domingo, 26 de maio de 2013

Ágora


Ele era uma praça.
Nele havia mendigos,
um espaço de fé,
crianças correndo,
pombos em revoada,
idosos jogando damas.

Ele: aquilo tudo.
Abraçava a diversidade
quermesses e ambulantes.
Ele: um enorme buquê de flores
perfumados manacás.

Conhecia o caminhar de cada um,
entendia o pisar emocionado
seu chão sensível, os percebia,
mas ninguém o via encolhido
a observar transeuntes,
a contar os sacos de pipocas,
nem os palitos de picolé.

Ele era a praça.
Aquilo tudo.
Um enorme buquê de flores.
A pele social sensível
que ninguém tocava..
Olhos atentos
que ninguém olhava.

sábado, 18 de maio de 2013

Mímesis ?!?

Há uma melancolia
escrita pelos seus passos
uma vida que manca

Faz yôga e balé
e risca o caminho
com a ponta do pé

suas mãos não acenam
nem esperam por ninguém
seguram qualquer barra
só não apontam estrelas

na sapatilha um segredo
do esconderijo que é
contido na ponta do dedo

Dançam seus olhos furta-cor
cegos de horizontes
recortando o nada
arrastando-se sem deixar rastros

gira em rosas
desenhos de espinhos
baila no devir

A vida por um fio
na corda bamba dos dias
tece no mais dentro
a vontade de explodir

não salta, não solta
presa a maquiagem
ribalta, o corpo a escolta

Não mora nenhum espelho
em seu bosque secreto
nem flores em seu jardim
é áspero seu sentido

nenhum ritmo a traduz
seu movimento em silêncio
reflete a sombra da luz






segunda-feira, 13 de maio de 2013

ATIRE A PRIMEIRA PEDRA ,QUEM NUNCA USOU UM ESTILINGUE...






  Uma melancolia matutina foi descendo a rua e o encontrou. Ele buscava uma brecha de sol que lhe trouxesse alguma poesia. Beijou seu cachimbo, sempre apagado, desde que prometeu a mãe que não mais faria nenhum sinal de fumaça. Cabeça baixa, de repente, riscou o chão com os pés, feito um touro e partiu, com a roupa do corpo, uma carteira com algum dinheiro e sem escovar os dentes. No bolso do casaco, somente, uma conta de luz e o inseparável "Estilingue", nome que dera desde o primeiro texto rabiscado a seu caderninho-matriz, onde codificava sua poesia, para depois desmanchá-la em versos livres, frouxos, soltos, como ele se sentia naquele momento de partida.
   As janelas ficaram abertas, a porta encostada, os livros sobre a mesa, o computador com a página aberta em um site pornô, uma garrafa de vinho pela metade, a vida sem tornar-se inteira. Nunca mais se ouviu falar sobre o morador que desapareceu numa manhã comum. Pessoa tão Especial.
   Tinha botas pesadas, aquele homem, aliás ele todo era pesado, seu casaco cheio de bolsos, parecia carregar segredos de todos os tamanhos, além disso ele tinha a percepção de um felino. E a noite, feito um gato era pardo. Havia um mistério naquele silencio que gritava em códigos no Estilingue: aquele  caderninho velho que usava, como atiradeira. Era sua alavanca do dizer...
   Ninguém tinha notícia de um texto por ele escrito, usava um falso nome, pra dizer verdades, pra fazer literatura: ele era vários. Muitos o  habitavam.
   Enquanto há palavras, há vida. Foi o que deixou escrito na parede do apartamento abandonado: ele era uma interrogação, seguida de muitas reticências...
    Todas as paredes de seu apartamento tinham prateleiras, bordadas com muitos livros, raros, banais, clássicos e best sellers, que a zeladora do prédio limpava todas as tardes de segunda-feira. Ele dizia a ela ao pagar pelo serviço: Se um dia eu me for, essa casa será um centro de leitores, não quero que doem meus livros, mas que venham lê-los, fazendo-os existir. E assim foi, desde que desapareceu. Sua casa virou uma biblioteca aberta, sempre aberta e ele um homem tão fechado.
     A cada mês, naquele endereço, chegavam contas e dinheiro pra pagá-las em seguida. Ninguém entendia aquele acontecimento, mas o lugar ficou conhecido. Virou notícia. Virou mistério.
       Durante todo esse tempo do desaparecimento, havia um homem que visitava o centro de leituras, fotografava-o e sumia, depois de muito tempo retornava. Nestes tempos, chegavam novas edições de autores variados, mas um leitor assíduo - um rapaz de uns 16 anos - notou que o logotipo da editora era um estilingue. Resolveu, assim pesquisar que editora era aquela e quais eram aqueles autores. O máximo que conseguiu saber sobre aquelas produções é que elas eram editadas, a partir de originais que chegavam pelo correio, cada vez com um endereço diferente, às vezes de cidades brasileiras, outras de fora do país por um homem que ultrapassava fronteiras.
     

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Atravessando a cegueira

Imagem: Claudia Lemos

Para Márcio:


Amigo é o nosso avesso
em seu sentido confiado,
não nos carrega nas costas,
nem caminha, apenas, ao lado,
mas olha -  olhos nos olhos -
e diz: _ Você está errado.


Amigo é nosso espelho arranhado.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Amalgamados




As folhas de outono levaram o vento pra longe...

Com fusão
desfez-se em dois 
sem razão
o poema descompôs

bocas amalgamadas
por palavras falsas
imagens descoladas
ira sobre as balsas
  
olhos d'água afogados
sem molharem os pés
ondas de amores ilhados
espalhadas no convés

Nunca mais o beijo frio
seco de tanta espera
no cais a meio fio
o tempo é besta fera

Sobrou só a estiagem
de um tanto que não havia
versos cobrindo a paisagem
na sombra do que escrevia

Sonhos em folhas  outonais
pra sempre partidos assim... 
num sopro feito em hai kais
levaram estrofes de mim







quarta-feira, 8 de maio de 2013

Cabeça de vento




Ela engolia o choro,
sempre que chovia.

Escondia o sorriso,
se o sol aparecia.

Fechava os olhos,
para guardar a paisagem
que não via.

Era afeita ao contrário:
avessa a travessia.

Enxergava no escuro,
onde nenhuma luz havia.

Quem sabe por isso
se chamava Luzia?!?!

Permitia-se a vida,
como  a escrevia.

Era cabeça virada
pelo vento da poesia.